A Irmandade da noite
No outro dia tive uma sensação de pertença. Senti que me encontrava integrado de alguma maneira numa sociedade, tinha amigos e as pessoas aceitavam-me como eu sou. Imaginei logo que pertencia a uma irmandade. Senti que estava naturalmente em sintonia com o mundo, pois dali, naquela irmandade, via e sentia o conhecimento que me rodeava, além de que os meus amigos vinham ter comigo. Então, imagino, com base na minha realidade, uma ‘Irmandade da noite’, pessoas que vivem mais pela noite ou a qualquer hora do dia, neste mundo confuso em que só alguns têm o direito de viver a vida, a dos seus sonhos, calmamente desfrutando do tempo e do espaço que constitui este mundo; os outros estão condenados a ser carne para canhão, porque não aprenderam ou a vida não lhes permite viver a vida em prazer, a usufruir uma humanidade equilibrada e agradável; porque neste mundo de dinheiro tem que haver o pobre para sustentar, com o seu trabalho, o rico, o pobre é o que produz, porque necessita; porque no mundo há e tem de haver a ambivalência e os opostos, logo, se há rico tem que haver pobre, se há a sorte é porque existe, também, o azar; além disso são 80 por cento a trabalhar para sustentar esses 20 por cento de luxo e bem-estar máximo; e não é que eu quisesse ser como um deles, no fundo, mas também quero ser feliz; preocupo-me pela injustiça, pelo desequilíbrio, pela ambição destruidora de muita gente sem escrúpulos, tal como tantos outros se preocupam. [Nem sei eu porque defendo quem não conheço, talvez porque tenha medo de ser um deles, dos pobres, ou porque eu estou do lado daqueles que têm dificuldades]. Alguns não dormem para que o mundo, efectivamente não pare, o mundo económico que irá destruir esta terra se a terra não destruir este mundo económico, de ganância, de ignorância e alheamento. Quer-me parecer que as pessoas da vida de sonho já não sabem de onde vêm as coisas (o certo é que elas vêm), nem o que são a natureza ou os animais, e vivem num mundo virtualmente intenso e intensamente humanizado; além disso, elas têm todos os direitos do mundo; ajudam quem mais necessita, porque elas nunca sequer se questionaram acerca da possibilidade de elas serem as pessoas necessitadas ou virem a ser um dia, os outros é que são e serão sempre os necessitados. [Mas duvido constantemente de mim mesmo e do que digo, se terá sentido aquilo que sinto e digo, pois não posso ser enganado pelos meus sentimentos - que podem ser falsos e inverosímeis e incoerentes por motivos exteriores a mim -, mas, como já disse muita vez, há o bem e o mal, acredito nisso, e eu procuro que a minha mente seja clarividente a ver isso.] Agora, senti que digo isto como se eu fosse alguém isento nisto que digo, quando na verdade faço parte da globalidade deste mundo humano, portanto, estou nalguma parte desse mundo, não num mundo à parte a ver isto, mas estou ao vivo neste mundo, no meio da acção; ao mesmo tempo vejo com olhos de falcão, isto é, apesar de estar em terra é como se eu tivesse a visão de falcão, a visão daquele que anda lá bem no alto. Constantemente eu me imaginava e imagino, na minha juventude, a concretizar os meus sonhos, a viver a vida de acordo com o que eu sentia e sinto, mas claro que isso foi, é e será (muito provavelmente) uma utopia, quando na verdade existem os outros, dos quais eu não estou em sintonia, que não me permitem exercer a minha liberdade. Não estou em sintonia nem mesmo com a minha família, da qual já estive inteiramente integrado, nesse clã que as forças de um mundo infinitamente complexo e em mutação fazem mudar e alterar (e que aceito que assim seja, no fundo), forças que fazem mudar a relação entre as pessoas, mesmo entre as conhecidas e entre as que um dia foram fortemente íntimas connosco.
Assim, prossigo o meu pensamento tentando compreender porque estou só neste meu ser e ninguém pode compreender a totalidade do meu ser a não ser eu, ou, talvez, nem eu consiga entender a totalidade do meu ser (…), daquele que sou e que vou descobrindo a cada dia que passa; as alegrias e tristezas por que passei pertencem-me e a mais ninguém, e é no meu passado que encontro as respostas ao porque de todas elas. A cada dia que passa enterro-me mais no que sou: penso que sou uma pessoa boa e com grandes ideais e boas intenções, mas que não encontro a minha paz neste mundo, o meu bem-estar, a irmandade verdadeira, a comunhão com os seres que me são semelhantes, como se eu fosse um ser marginal ou um desencontrado crónico enquanto humano e apenas me reste a ebulição do ser, a metamorfose da alma, o hino de uma vida que vale tanto como tantas outras e que passará muito provavelmente despercebida, ou então, que só um destino, quiçá pós-morte, eleve a alma desta minha existência aos confins do infinito, do Universo, e talvez encontre a ‘Irmandade universal’ dos seres que já algum dia passaram por esta terra e já encontraram a sua paz e o equilíbrio eterno entre eles e a sua passada existência.
A noite deve ser estranha para a grande maioria das pessoas, pelo menos as que vivem de dia e não ousam ultrapassar a sua rotina e/ou ir à procura de novas descobertas e sensações. A noite entranha um conceito de libertação das pessoas que vivem na normalidade do dia-a-dia, de dia. O homem conquistou, com a electricidade, a noite e o mundo nunca mais dormiu. Mas nem por falta de luz os antigos deixavam de circular na noite, como homens que percorriam com instinto a noite a fim de alcançar outros lugares. O mundo diurno pode ser um verdadeiro pesadelo para certas pessoas, como contem um ritmo normal, estimulativo e inquestionável para muitas outras. Não tenho dúvida, pelo que sei que a noite altera as pessoas. Há que ultrapassar os limites, há que procurar novas sensações, e o homem é o ser da descoberta e da interpretação do que existe, a noite tinha que ser conquistada e interpretada, e não quero defender com isto o homem e a sua atitude. Mas para alguns surge como uma conquista inevitável, a fim de resguardarem as suas vidas. Resguardarem as suas vidas da palhaçada que ela (a vida) pode ser, que brinca connosco a seu bel-prazer, com indiferença. Pois é, alguns entram na noite para a palhaçada, outros entram nela para tentarem sair dela, pelo menos compreender a palhaçada que é esta vida. Dizem que defendem o ambiente, e o ambiente degrada-se mais a cada dia que passa, com mais ou menos entraves, com mais ou menos adiamento dessa destruição; dizem que ajudam os pobres, mas quem se ajudam são as elites entre elas, o poder pelo poder; dizem que regulam a direcção da nações e tentam levá-las a bom porto, mas os estragos são enormes, em nome das elites e do progresso - que não se compreende (o que progresso é) -, criam-se necessidades que poucos podem usufruir, abarcam-se e destroem-se culturas e seres, humanos ou não, exploram-se seres e a terra, e o acaso dá-se nas incomensuráveis variáveis que agem no mundo com enorme conjunto de seres que se auto-atropelam e caminham em busca de um bem-estar utópico. E com o que disse abarquei o caso da política também. E eu?! Qual a minha situação no meio disto tudo? Eu não sou mais que uma pessoa, um entre tantos, e eu não posso fazer mais que pouca coisa senão viver a minha vida, dizer o que acho, deitar achas para a fogueira da vida, participar nesse cozinhar utilizando esta caldeira efervescente, utilizar o meios que tenho, usar o conhecimento e a minha capacidade física (as minhas pernas, os meus braços, os meus olhos, etcetera) e caminhar, olhando, ouvindo, dizendo (mostrando) quem sou eu, vivendo neste tempo, até não mais poder. Talvez todos os tempos tenham sido de excessos e complexidade que só uma entidade superiora regula, e parece-me que sem uma vontade particular e própria. Mas eu quero viver feliz e de acordo com o que sinto, ou então eu estou a sentir tudo errado, mas seja como for eu sinto e tenho direito a sentir e a viver, porque também respeito o que os outros sentem e respeito o seu espaço. Fugir ao dia quando se sente encurralado, embrenhar-se na noite, nem sempre dá certo, ao não ser, talvez, que o destino assim o queira. Na noite quebram-se as regras do dia, e eu agradeço a existência da noite porque as regras e normas do dia seriam extremamente difíceis de suportar, para mim, sem poder reflectir na noite sobre elas, reencontrar-me com o ser que sou, um ser desrespeitado – regras e normas, essas, que seguem, muita gente, cegamente, e que para mim são difíceis de seguir, porque não me foi permitido, além de que eu amo o sentido supremo da vida e não cultura abjectas (abjectas porque não contêm esse sentido supremo) que se imiscuiem com esse ‘sentido supremo’, tentando reinar a cultura do caos e da opressão dolorosa e injusta -. Não gostaria de incitar à revolta pela revolta, não, apenas queria que as pessoas compreendessem no seu íntimo, sendo analfabetas ou letradas, vivendo em Portugal ou noutra parte do mundo, nas mais diversas culturas, compreendessem, repito, esse sentido supremo da vida como eu senti e sinto [acredito piamente que era possível isso, se cada um dos seres fosse bafejado por esse sentido à nascença como eu fui], sentido supremo esse que aborda a cordialidade e a existência de uma inteligência superior dos homens, uma sintonia com a vida e os restantes seres, um conhecimento que transcende e respeita os seres e o ambiente, um luta de braços dados pelo bem-estar e o equilíbrio e não uma luta de uns contra outros, alimentando a discórdia, a desconfiança que haverá enquanto houver seres a nascer sem amor e sem conhecimento, a perpetuar a incompreensão natural que o conhecimento devia colmatar nas pessoas, porque nada é com elas, quando tudo é com cada um. Na noite tenho visto tudo isto e isso que digo e sinto, através da minha vida. Talvez eu pertença a uma Irmandade da noite na busca pelo dia em que eu possa caminhar em paz, no dia, momento esse que nunca mais chega mas que está cada vez mais presente.