Refúgio
Quando tenho medo, refugio-me, se puder. Tenho medo de me perder, por isso me refugio. Refugio-me para saber quem sou. Ainda tenho um refúgio! Ainda tenho onde me abrigar! Ainda sei onde me encontrar! Não sei até quando, mas tenho, agora. Não quero estar sozinho, por isso me refugio. No refúgio me encontro com a humanidade. No refúgio reside a minha esperança. Porque neste mundo já não se pode ser quem se é, temos que ter um refúgio. Se refúgio significa abrigo, o abrigo é onde nos sentimos bem. E eu refugio-me das pessoas quando não estou bem junto delas, mas se pelo contrário quando esse meu refúgio deixa de ser o sítio onde me sinto bem, eu procuro outro refúgio. E, então, refugio-me na multidão e/ou no encontro com um amigo. Mas há refúgios que são breves, num curto espaço de tempo o deixam de ser. Quando trabalho, penso no refúgio do meu descanso, quando descanso necessito do refúgio do meu trabalho ou de um trabalho, da luta pela vida, da construção de um novo refúgio, porque nada é imutável na imensidão do tempo. E no meu refúgio eu tenho muitos refúgios. Há momentos em que os meus refúgios parecem desaparecer, todos. Nestas palavras eu me refugio, no encontro com os que lerem estas palavras eu construo novo refúgio. E ao pensar eu me refugio, no passado me refugio, no futuro tento criar o meu refúgio. Refugio-me na saúde, quando a tenho, refugio-me na doença e quando estou alegre, refugio - me. Os cinco sentidos são refúgios, que em certos momentos mais parece que não os queríamos ter. A música agradável torna-se incómoda e doentia - talvez porque tudo tem a sua duração e máxima intensidade, o clímax, o êxtase - nada pode demorar mais do que o tempo que deve durar, e cada um de nós tem o seu tempo. Então é momento para fazer uma pausa e refugiarmo-nos no silêncio. Assim como o refúgio do toque, tão imprescindível para que saibamos sentir o mundo, noutra linguagem, que se torna tão doloroso na sua ausência, ou pelo contrário, insensibilizados pela sua abundância desenfreada. Mais valeria não sentir o toque. Pensamos no outro como refúgio, não pensamos que no fundo pertencemos a nós próprios mais do que a alguém, e o refúgio nem sempre é o outro, e por vezes, ou muitas vezes, é tudo menos o que pensamos que é, porque nada é o que é, para sempre. Mas precisamos tanto de alguém… de nos dar e de receber, de encontrar com quem possamos compactuar – e o mundo muda, as pessoas muito, mas muito mais! Somos tão diferentes (!) que isso me chega a fazer sentir a solidão mais profunda, porque no fundo, se calhar, sou eu que o sou, apenas eu. Imiscuímo-nos nos cheiros que nos envolvem e chegamos a um ponto em que já não nos apercebemos mais desses cheiros. Cheiros que nos alteram a percepção. E essa percepção por vezes torna-se de tristeza. Tristeza da ausência daqueles cheiros que cheirámos naqueles momentos que foram o nosso refúgio. Mais valia não cheirar-mos em certos momentos, porque isso tira-nos vida, como se o simples recordar desgastasse. Desgasta o nosso ser, ver que não podemos abranger sabendo que há um refúgio para lá daquele horizonte que nos fascina, saber que há aromas que nos iriam revigorar e nos devolveriam a alegria, passageira, porque seriam novos – se conseguirmos cheirar, ainda. O paladar é um refúgio também. Que também se acaba por perder, porque a vida é mesmo assim. Afogamos a alegria no comer. Outrora essa escassez quase nos tirava a vida - se bem que alguns comem para viver, os que se dizem inteligentes (para si próprios), os degustadores, como que intocáveis, onde o suor de homens que trabalham árduo enfrentando um sol abrasador para colher o fruto da terra é comprado por uma bagatela (como se eu pertencesse a esse grupo de seres), como se já nem o alimento fosse o mais importante, como se eles percebessem de qualidade dos alimentos, tanto quanto eu sei o que estou para aqui a dizer (como se fosse vergonhoso ser-se altivo na vida) mas deve haver homens privilegiados... deve mesmo -. Nós não somos sistemas isolados dos que nos envolvem, e o outrora ainda é o agora - basta abrires os olhos - porque nada podemos fazer acerca disso, a maior parte das vezes. Afogamos a tristeza no comer, um refúgio como outro qualquer. Deixámos de saborear o verdadeiro gosto da vida, o refúgio na produção intensiva, do desperdício, da técnica e da ciência, tudo isto, fantástico e útil. Diria que é magnífico este mundo novo, onde a inteligência comum dos homens atinge patamares - para muitos, que até eu, posso não conseguir imaginar -, mas que não deixa de estar longe da perfeição que nunca se chegará a atingir, mas cheio de funcionalidade, de perfeições confinadas a momentos e espaços determinados, a sistemas e pessoas que criam beleza, batem recordes, fixam essas perenes perfeições do mundo numa tela, criam perfeições, o clímax, o auge, êxtase de todo um caminho percorrido em busca de um objectivo, por tantos não alcançado, esquecidos no comum sentir dos tempos. Enquanto pudermos degustar o que sabe bem e enquanto o organismo nos devolver satisfação pelo que degustamos então devemos continuar a viver se nos for permitido. Desejo não chegar ao ponto em que os alimentos já não saibam o que souberam no passado, onde tudo se torna sensabor, e tornar-me um ser vegetal. Aí a vida não faria mais sentido, visto agora desta perspectiva, neste momento - mas ai serei velho e terei vivido, a meta que se dignam de atingir o que estão talhados para tal, o futuro não nos pertence de todo… -. Não valeria a pena comer sem sentir o paladar dos alimentos. Mas há sempre um refúgio…eu consigo ver isso, ainda. Eu vejo, e agradeço ainda pelo que vejo, por isso serei um ser normal – afinal estou a dissertar sobre o que sinto, pelos meus sentidos, percepção inigualável do mundo, uma maneira inimitável de se abrir perante ele, ou pelo contrário, apenas muito comum. Não interessa… -, se bem que me refugio muito por achar que vejo demais, quando na verdade verei mas é pouco – verei aquilo que vir, e esse sou eu. Não me deveria achar estranho, mas tenho receio de ser abandonado, que me julguem pelo que não sou, que perca a minha dignidade ou que não me tratem com a dignidade que eu trato os seres que me envolvem, como já alguma vez senti perder -. Eu vejo, e não há sentido inigualável ao ver! Mas de que me serviria ver se não tivesse os outros sentidos? E é tão agradável, neste momento, esta noção mental que me percorre o corpo, de que eu sou todo uno. O que vejo faz-me recordar cheiros e vice-versa, faz-me recordar paladares e vice-versa, toques e vice-versa, sons e vice-versa, e tudo ao mesmo tempo também, a consciência mental a evoluir sobre a consciência física, o que sabemos sobre o que somos enquanto seres físicos, a construir castelos na mente, o reconhecimento de que somos tão pequenos enquanto seres físicos, cada vez mais, e a aceitar cada vez mais também o que vier, o atingir de patamares cada vez mais altos ultrapassando um estado em que não nos podemos contradizer - algo fala mais alto e não nos é permitido tal -, porque sou quem sou, e só tenho que seguir sendo quem sou, porque não posso ser outro, signifique isso o que significar. Eu vejo a humanidade, sim, eu vejo! Ainda… porque o fim está sempre presente, porque todos o têm de aceitar, quer queiramos quer não, se bem que poucos pensem conscientemente sobre tal, como se isso fosse algo a ultrapassar, que pode ser vencido. Esse é o lema da vida humana que faz seguir os homens, quebrar barreiras, barreiras de conhecimento, descobrir tudo o que se possa descobrir no espaço de uma vida, sempre a pensar na continuidade - como se a liberdade fosse infinita, como se não houvesse ‘senão’, como se não houvesse a contrapartida, o efeito secundário -. E o equilíbrio é tão subtil! Por vezes parece simples de mais para perceber. Mas é curioso como dentro dessa simplicidade, há uma grande complexidade, que dentro do que já parece expectável está o incerto, a recombinação de tudo, e que tudo faz sentido, apenas agora, e na verdade há que aproveitar (talvez amanhã já não diga o mesmo…). Dentro da visão da humanidade não cabe o espectro de que há a antítese do seu lema, como se houvesse a contradição em tudo, a maioria das vezes implícita. Faça o que se fizer, a vida foi como foi, é como é, em função de tudo o que existe, se sou o que sou, sou-o porque outros me antecederam, e outros me envolvem e aumentam esta consciência humana, da qual faço parte, e me exprimo por ela assim. Agradeço aos que me mostram o que eu consigo ver, o mundo, como se ele fosse perfeito, o mundo virtual que eu reconstruo na minha mente. Agradeço aos que e às que – como se elas fossem outro mundo, a metade que completa o puzzle, o pólo oposto, o yang da humanidade - me fazem sonhar, aos que me criam refúgios, onde me posso encontrar, onde a minha vida tem sentido, àqueles que normalmente são anónimos e os posso conceber na minha mente como seres que me estimam e a quem eu estimo, como não poderia ser de outra maneira.
E refugio-me das mágoas. Afasto-me de quem me pode magoar. E é quem conhecemos que nos magoa, muitas das vezes quem é próximo de nós, porque nos conhece ou deveria conhecer, e, sendo assim, não deveria dizer ou fazer aquilo. Na verdade é duro de mais, quando sinceramente, dizer: ‘Amigo’. Isso significa uma forte ligação que pode facilmente ferir. Alguém a quem nos abrimos, que nos conhece bastante mais que os outros e um dia troça de nós, nos prega uma partida sabendo ou devendo saber que não devia fazer tal. Vê o seu erro e não o quer admitir, e não pede desculpa. Mas não faz mal, da minha parte, tudo passa. Eu arquejo com os meus erros, assim como os outros terão que arquejar com os deles. Eu também magoo sem me aperceber, sei-o. Mas não sou inimigo, jamais o serei, de alguém, quem quer que seja. Sou demasiado perene para tal. Mas lutarei para que tudo se equilibre, para que haja sincronia, para que possa ter o meu lugar, o meu refúgio. Não podemos agradar a gregos e a troianos. E até gregos e troianos têm muita coisa em comum.
Tenho o desejo de encontrar o meu refúgio.